25 junho 2013

Sabença, senhor abade!

Cónego Leite de Araújo


No tempo em que havia padres em Portugal, Fafe tinha um senhor abade. Uma vez por semana, o senhor abade descia a minha rua para ir dizer missa na capela de ricos da Casa do Santo Velho e a minha mãe mandava-me ir ter com ele para lhe pedir sabença. Eu interrompia os deveres da escola primária e ia a correr, todo contente. Fazia fila atrás dos outros miúdos todos e, quando chegava a minha vez, lá dizia, com o respeito que me fora ensinado, "Sabença, senhor abade!", beijando a mão que me era estendida. O senhor abade fazia-me uma pequena festa na cabeça, com a mão que tinha de vago, e respondia-me "Deus te abençoe", que era o que eu queria ouvir. O senhor abade seguia o seu caminho e eu ia para casa num sino. Acreditam que aquilo me fazia feliz?
O senhor abade cheirava a tabaco e perfume. Andava sempre de batina e, no Inverno, usava uma capa negra que parecia de filme de espadachins. Com o correr dos anos, o senhor abade subiu a senhor arcipreste, pendurou a sotaina e começou a sair à rua de fato preto e cabeção, passou a cumprimentar-me de mãozada e fizeram-no senhor cónego. Cónego Leite de Araújo. Era um homem elegante, distinto, culto, bom e pobre. Era um ser humano com defeitos e extraordinário. E foi meu amigo. Não sei se Fafe tem a contabilidade em dia com a sua memória.
No tempo em que havia padres em Portugal, o senhor abade de Fafe tinha consigo ao serviço da paróquia, para além do padre Adélio que ensaiava o orfeão, dois jovens coadjutores, palavra que eu não sabia dizer mas que me fazia rir, porque imaginava que, com um título assim, aqueles dois eram padres de acender e apagar. Tanto quanto sei agora, apagaram-se quase todos os que por lá passaram. Apagaram-se como padres, quer-se dizer. Tiveram muitos filhos, foram muito felizes e casaram. Geralmente por esta ordem. Em todo o caso, a esses já eu não beijava a mão, mas pedia sabença. Tínhamos isso combinado. E eu ganhava o "Deus te abençoe" que me dava tanto jeito.

No tempo em que havia padres em Portugal, não havia Paula Bobone, graças a Deus! Por isso o beija-mão era uma coisa, por assim dizer, pouco higiénica. Porque o beijo era mesmo beijo e não a mariquice do beijo de faz de conta, a "simulação de beijo" recomendada pela etiqueta da treta. Eu pedia sabença com beija-mão também ao meu avô e à minha avó da Bomba e ao meu avô e à minha avó de Basto, gente de trabalho que tinha as mãos como calhava quando eu lá esparramava o reverencial ósculo. Sim, seria talvez pouco higiénico, mas era verdadeiro. E ainda cá estou.
Durante toda a minha vida pedi sabença. Ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Aos poucos fui desfazendo a corruptela, passei pela "sabênção" até chegar ao que peço há anos: "a sua bênção". É verdade, continuo a pedir a bênção à minha mãe e aos meus tios e tias, alguns apenas um pouco mais velhos do que eu. E não é só por respeito ou porque me ensinaram em pequenino. Eu acredito nas bênçãos. Por falar nisso: sabença, senhor abade!


Hernâni Von Doellinger

8 comentários:

Constança Oliveira disse...

O sr abade cheirava a tabaco, a perfume e adorava café. :)E não, não me parece que quem de direito em Fafe, tenha tratado e trate a sua memoria, tanto quanto ele merece e fez pela paróquia. Bem aja por este texto que está
fabuloso e me fez voltar atras no tempo. Obrigada

Hermínio Soares disse...

Só me apraz dizer...
"Sabença Sr. Hernani"

Anónimo disse...

Eu, também acredito nas bençãos

Acho que nos devemos abençoar uns aos outros mesmo que em pensamento


Que Deus o abençoe Hernâni
e a todos que visitam este blog

Numa bênção mais alargada que Deus nos abençoe a todos
Amén

Maria

Anónimo disse...

Muito obrigado, pela parte que me cabe.
h.

Filomena disse...

"No tempo em que havia padres em Portugal"? Mas já não há? Ou então os padres já não abençoam, ou as pessoas já não procuram a bênção...

Anónimo disse...

João capítulo 14, versículo 6.

Disse-lhe Jesus: «Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida.
Ninguém vem ao Pai senão por Mim.

Existem muitas pessoas com o mesmo nome
A bem da Verdade, não conheço a Filomena que escreveu o comentário acima

Filomena Magalhães

Anónimo disse...

Texto bem elaborado e agradável de se ler. Parabéns... Já agora, quando pode fazer um texto sobre os seus avós de Basto? Talvez haja ligações familiares...

Anónimo disse...

http://tarrenego.blogspot.pt/2013/01/ora-meta-me-o-cu-pelo-nariz-acima.html

http://tarrenego.blogspot.pt/2012/04/o-meu-tio-al-pacino.html

http://tarrenego.blogspot.pt/2011/09/o-paozinho-do-senhor.html

http://tarrenego.blogspot.pt/2011/12/o-minho-cheira-natal.html

http://tarrenego.blogspot.pt/2011/09/gostava-que-eles-fossem-merda.html