02 abril 2013

Ensaio sobre a obra Ficar de Pompeu Miguel Martins


Sabem qual é a pior coisa que se pode dizer a alguém que escreve um livro? É dizer que escreve bem. Se aqui escrevesse que Pompeu escreve bem estaria a ser muito injusto. Quando se escreve um livro deve ter-se a pretensão de ir mais além. Escrever bem refere-se a estes textos que vamos publicando aqui no blogue. Um livro para ser editado tem de fugir deste estereótipo. Pompeu vai além disso!

Tive o gosto de comprar Ficar aquando da sua apresentação em Lisboa. Mais gosto tive depois de o ler. Estamos perante uma obra prima? Claro que não! As obras Primas são escritas aos noventa anos, caso se consiga lá chegar. Mas é um excelente livro.

Para já, uma característica técnica que facilmente se constata é a presença contínua da poesia na própria prosa. Cada frase esgota-se. Cada uma é um verso, cada palavra é sentida. E só no fim se dá a síntese. O livro ganha, assim, contornos muito próprios: o prazer associado a cada palavra.

O título parece guiar-nos para a essência da obra, mas não a sugere totalmente. É estabelecido antes disso um jogo de ir e voltar. O verbo «ficar», para Pompeu, é muito mais do que «ser». Embora o «ser», pela sua própria essência, se apresente num perpétuo movimento, o «ficar» é o desenlace desse movimento, é a causa final, a causa eficiente, por isso tem todo o sentido dizer «Tudo o que é vivo vive para ficar» (p.101). Uma espécie de «motor imóvel» que justifica a existência. Quase que apetece dizer que tudo tende para o seu lugar natural. Aqui reside o segredo existencial.

Efectivamente, Ficar é um tratado existencialista, não aquele que é comum conotar-se com o existencialismo ateu ou mesmo com o cristão. Pompeu surpreendeu-me. Estava à espera disso, de uma saída transcendente porque a presença teológica parece, aqui e ali, à espreita. Mas acaba por revelar, o que é arrepiante, que «vive-se com, Vive-se para. Vive-se porque» (p.101). A vida esgota-se nela mesma e o seu sentir corresponde à noção de que «Há momentos em que tudo é muito claro por ser genuíno. Por chegar na hora certa, por ser como deve ser sem imposições.» (p.88)
Quando descobrir a hora certa?

A hora certa é dada pelo tempo. Porém exige-se que se parta, não para qualquer lugar, mas para algo que nos sugira uma fuga, ali onde a fronteira do desconhecido se oculta e transparece. Istambul! Lá ganha-se forças perante o erotismo da vida, no que se quer mostrar ocultando-se. O prazer de viver advém disso mesmo porque «há um certo erotismo [...] nesse sentimento de fuga para fazer nascer o desejo de regressar com espanto e uma vontade muito maiores do que o que tínhamos assim que partimos. (pág. 10). O climax desse erotismo é alcançado quando há uma sincronização espacio-temporal, quando se dá a cisão entre espaço e tempo, quando o tempo alcança o seu lugar e quando o lugar é alcançado pelo tempo. Tal só é possível se vivermos intensamente a ingenuidade da criança, o voluntarismo do jovem e a sensatez do adulto. Mas é na velhice, através da constatação de que «o amor é o direito ao exílio que todos os seres viventes deveriam possuir» (pág.19), que sabemos tudo isso. Daí resulta a sábia ideia de que os «velhos são garantias». É o reencontro com o Largo, esse Largo de todos nós, fafenses.

António Daniel

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