O som ecoava por toda a rua. Marcava a cadência do levantar. Criava uma imagem de Kentucky no canto da boca ao mesmo tempo que a martelada no sapato marcava a sinfonia matinal. Parecia que toda a rua se deixava levar pela musicalidade do momento. Seis da manhã. Outro som se intrometia. Pelo toque do líquido nas latrinas de metal, todos se preparavam para o leite. Ainda hoje oiço o som. Mas era a tosse do Sr. Ilídio que se sobrepunha.
Antigo jogador de futebol, como seria fácil de constatar pelo arqueamento das pernas, Ilídio tinha aquele sorriso que motivava uma graça mas também uma ternura de um tipo que sempre relembramos. Depressa inventou uma locomoção para o triciclo que me movia da Travessa da Rua do Maia até ao Assento. Sempre com o seu Kentucky no canto da boca, empurrava-me com um pau bifurcado na ponta que permitia, simultaneamente, o emprego da força adequada à relação peso-potência e à insinuante deslocação pelo paralelepípedo.
De regresso à sua oficina, Ilídio procedia ao batimento generoso de um sapateiro afamado porque sabia que um sapato depois de ir ao sapateiro renasce na sua dignidade. Melhor, adquire outra dignidade.
O problema existencial residia no engarrafamento.
O engarrafamento do vinho era festivo. As garrafas, predispostas para a ocasião, engalanavam-se para receber o chumbo que as purificava dos resíduos anteriores. Lá estava o pipo e a respectiva bicha. O tal problema residia na iniciática inspiração do conteúdo do pipo para depois introduzir na garrafa para aonde o vinho descia feliz. O meu pai, zeloso pela tarefa desempenhada, cumpria com profissionalismo, facilmente constatável pelas garrafas que ia somando; Sr. Ilídio, desejoso de afogar o sabor do Kentucky, não enchia qualquer garrafa apesar do vinho seguir feliz.
Na ingenuidade de um miúdo, para quem o mundo inteiro era aquele, sentia-me feliz pela presença do Sr. Ilídio. Contudo, sabia uma coisa acerca do Sr. Ilídio: a felicidade e a infelicidade não faziam parte do seu léxico existencial. Era, simplesmente, a vida.
António Daniel
12 comentários:
Em meu entender, o grau de felicidade ou infelicidade existe mediante o grau de importancia que dermos a nós mesmos. O sr. Elídio por simplesmente viver, era feliz mesmo sem saber.
F.M.
Peço desculpa, Senhor Ilídio
Assim é que é
Com I não com E
F.M.obrigado pelo seu comentário. Quanto à felicidade, se enveredarmos pela sua noção, então partimos do pressuposto que a felicidade é um estado narcísico, na medida em que é motivada pela avaliação que fazemos de nós mesmos. Bom, aí há a possibilidade de estarmos errados, o que, convenhamos, não é muito saudável.
Agora, em parte concordo consigo quando diz que o Srº Ilídio era feliz sem o saber. A minha intenção, e penso que a captou, seria sublinhar que o conceito de felicidade é um conceito recente que, em tempos idos, pouca importância possuía. A tristeza, a alegria, a felicidade ou infelicidade faziam parte da mesma vida. Atualmente, talvez assim não seja. Parece que a infelicidade está fora da vida. Possivelmente estamos errados.
Cumprimentos e obrigado pela leitura.
Antonio Daniel,quando falo da importancia que damos a no´s mesmos estou a falar de aceitação. Aqueles que conseguem aceitar os acertos e desacertos e saber que estamos num processo de crescimento continuo têm mais probalilidades de viver em paz com a sua consciencia. Agora o conceito de felicidade é muito dificil de definir e varia mediante os valores que guiam a vida de cada um.
Felizes não podemos ser. como é que alguem pode ser feliz ao saber que existem pessoas a morrer de fome,com falta de medicamentos...
Tambem estar triste não quer dizer que se seja infeliz.
Agora estar de bem.
Só consegue aquele que conseguir ver o Sagrado em tudo que existe. Abrir o coração,e deixar entrar o Reino de Deus. A paz, alegria e o amor e mandar embora a inveja e o medo.
Um bem haja pela sua sensibilidade,
ao falar das pessoas simples. Desses é que é o Reino dos Céus
São textos como este onde encontramos a ternura, a memória e os afectos que nos fazem sentir bem pela mera existência de outros valores para além do défice ou da crise que, diariamente, nos consome a vida. Celebramos, por assim dizer, a sensibilidade das pequenas coisas e dos Homens anónimos de outrora que, na sua simplicidade, nos legaram valores simples, mas tão nobres, que quase permanecem esquecidos na actual sociedade.
Mais um excelente texto do António Daniel. Mais uma vez, parabéns!
Porque será que recordamos todos, ou quase todos, os rostos daqueles que, agora já desaparecidos, habitaram o nosso "bairro", "travessa" ou "rua"?
Será que a (in)felicidade morava ali ao lado?
Pedro, acima de tudo tenho que agradecer a quem me deu a oportunidade de «escrevinhar» sobre a nossa terra.
A. Freitas, é uma pergunta pertinente. Por que razão nos recordamos? Creio que a razão se encontra no facto de sentirmos que falta acabar alguma coisa... É quase como o ladrão que volta sempre ao local do crime. Só com uma diferença: não há eterno retorno. O tempo faz-se num sentido irreversível, pelo menos na nossa fugaz existência individual.
Pedro, acima de tudo tenho que agradecer a quem me deu a oportunidade de «escrevinhar» sobre a nossa terra.
A. Freitas, é uma pergunta pertinente. Por que razão nos recordamos? Creio que a razão se encontra no facto de sentirmos que falta acabar alguma coisa... É quase como o ladrão que volta sempre ao local do crime. Só com uma diferença: não há eterno retorno. O tempo faz-se num sentido irreversível, pelo menos na nossa fugaz existência individual.
Mais do que a "obra" inacabada,tenho para mim que é esse sentimento de irreversibilidade do tempo,a par com essa angústia de "para lá caminhar",mais do que qualquer outro,que nos faz "olhar" para trás.
Talvez dessa impossibilidade de retorno resultem as,quase sempre, gratas recordações de infância!
António Daniel,
Continue a escrever, como você tão bem sabe!! Você é uma lufada de ar fresco a falar sobre Fafe e bem haja a este blog por o acolher.
Maria Gonçalves
Maria, sinto-me obviamente lisonjeado pelas suas palavras. Assim que tiver tempo e algum assunto, assim farei. Obrigado.
Nelinho,não contava com texto tão belo!!!!escreves muito bem,parabéns...desconhecia esta tua faceta,se calhar é da rua do Maia,eu também adoro escrever,não quero dizer que tenha a tua habilidade,mas as lembranças das gentes da nossa rua,são uma constante na minha cabeça,eram uns tempos Lindos!!!!!!!beijinhos
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