Era habitual… Maio, Mês Mariano, rádio sintonizado em AM na RR. Palavras ditas e cantadas em unísssono, velas acesas que derretiam a cera (a cera a escorrer pelo fálico corpo). Na Igreja, palavras mansas próprias de quem está em estado de levitação, de quem maneja o rebanho. O Cónego. E nós todos: Avé… pelas intermináveis calendas do terço, descontávamos os rosários como um prisioneiro desconta a vida, vida essa que morava lá fora sobre a terra de Maio com o seu tempo indefinido. Contudo, até ao fim do mês de Maio repetia-se, sob uma voz sonâmbula, as passagens mais terríveis do Livro. Pecado, soava a dor no peito, diabo encarnava uma figura sem rosto mas medonha, para no fim tudo repousar no seu lugar natural, na Luz. A minha luz era, porém, a testosterona. Pela primeira vez pensei: é ela. A Carina correspondia a um desejo imberbe, a uma tentação que, curiosamente, se tornou divina. Perante a divindade, o complexo hormonal amolece, perde vigor, promovendo uma paixão que nos aprisiona porque transforma o objectum numa espécie de divindade oculta. No fundo simbolizava a Eva, a tentação agridoce.
Tudo era terrível, o luto, o peso evangélico, o pecado. Até que pensei: quando for grande quero ser padre. Claro que isto aconteceu muito antes de querer ser Bombeiro. O Bombeiro correspondia a uma adolescência do sonho, promovia o vigor, a luta. Em contrapartida, o padre simbolizava o poder. A gesticulação harmoniosa de dar a bênção com aqueles dedos médio e indicador sobrepondo-se aos outros dedos (O domínio, a segurança do dogma, a protecção fatalista, se Deus quiser…). É o período infantil do sonho.
Há ingenuidades que marcam.
António Daniel
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